18/04/2019

Ida aos arquivos — o meu avô Américo (2)








O meu avô Américo:
nunca teve carta, percorreu o país de uma ponta a outra (aliás, uma boa parte do mapa cor-de-rosa), de transportes, bicicleta ou a pé. Tremia que nem varas verdes e, portanto, praticamente não escrevia à mão. Tinha uma salinha, mesmo ao pé da entrada de casa, um escritório minúsculo (o grande era da minha avó) onde estava frequentemente a escrever à máquina, o tac-tac-tac das varetas no papel um dos sons da minha infância. Era escravo do relógio. Caminhava de mãos cruzadas atrás das costas, na maior parte das vezes com um assobio a marcar-lhe o passo, banda sonora de inúmeros passeios. No fim da vida era surdo que nem uma porta — uma porta assobiadora e afinada. Era um engenhocas e tinha outra sala, também minúscula, atulhada de… cenas, acho que é o termo técnico: cordéis, fichas, cabos, porcas, parafusos, ferramentas de todas as formas e feitios, lixas, caixas e caixinhas. Tinha um irmão, marinheiro, de quem me lembro pouco mas que dizia muitos palavrões — com gosto e à boca cheia, jovial. Como o irmão foi para a Marinha, e uma vez que o meu bisavô (aquele borracho galã de risca ao meio ao lado da ainda mais borrachinha que era a minha bisavó) era juiz, decidiu seguir Direito para lhe agradar. Foi, por razões que não vou aqui dizer, um homem corajoso na sua época — talvez não politicamente, nunca lhe ouvi uma frase anti-salazarista (nem pro-), mas de outras maneiras. Era uma pessoa doce, crédula, um coração imenso e ingénuo. Vivi com ele uma boa parte da infância e, já com meia-dúzia de pêlos no buço, no primeiro ano da faculdade, quando voltei para Portugal. Tenho, frequentemente, saudades dele. Andar a remexer nas minhas papeladas, tropeçar nestas (belas) fotografias, dá nisto.